Antes da chegada dos europeus, vastas regiões do sudoeste da Amazônia eram habitadas pela cultura Casarabe, um povo que dominou a planície boliviana conhecida como Llanos de Moxos entre os anos 500 e 1400. Novas descobertas arqueológicas indicam que essa civilização praticava uma agricultura altamente organizada, com extensas plantações de milho que poderiam ser classificadas como monoculturas, desafiando a ideia de que os povos amazônicos antigos cultivavam apenas sistemas diversificados e agroflorestais.
Estudos recentes publicados na revista Nature trouxeram evidências concretas de que a cultura Casarabe mantinha campos extensos exclusivamente para o cultivo de milho. Até então, arqueólogos acreditavam que populações pré-colombianas na região seguiam o modelo das "três irmãs" – milho, abóbora e feijão – ou sistemas agroflorestais.
“Sempre achamos que as populações pré-colombianas daquela região cultivassem uma variedade de plantas, como as ‘três irmãs’ [milho, abóbora e feijão] na América Central, ou que adotassem práticas agroflorestais”, explica o arqueólogo ambiental italiano Umberto Lombardo, da Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha, autor principal do artigo da Nature, que teve participação de integrantes do grupo do arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). “Encontrar uma monocultura de milho foi uma verdadeira surpresa”, completa ele, que viveu na região há pouco mais de 20 anos e pesquisa ali desde 2006.
A pesquisa foi conduzida com uma combinação de técnicas avançadas, incluindo sensoriamento remoto, análise de fitólitos (partículas petrificadas de plantas) e investigação de restos arqueobotânicos. Os resultados indicaram a presença massiva de milho nos campos e lagoas, enquanto nas regiões florestais a presença era menor, reforçando a ideia de uma paisagem planejada e voltada para a produção agrícola em grande escala.
A cultura Casarabe desenvolveu um sistema complexo de canais e reservatórios de água para permitir o cultivo mesmo em um ambiente sujeito a inundações sazonais. Durante os períodos chuvosos, canais garantiam o escoamento da água, evitando que as plantações fossem submersas. Nos meses secos, reservatórios ajudavam a manter a umidade do solo e ainda serviam como locais de atração para a fauna, facilitando a caça.
A organização social desses povos também impressiona. As escavações revelaram que os assentamentos seguiam um padrão hierárquico, com grandes montes centrais cercados por montículos menores. Essa estrutura sugere a existência de uma governança centralizada que coordenava a distribuição de recursos e o planejamento agrícola.
Os resíduos arqueobotânicos e análises isotópicas de colágeno em ossos humanos e animais reforçam a importância do milho na dieta Casarabe. Estudos conduzidos pelo arqueólogo brasileiro Tiago Hermenegildo demonstraram que até mesmo os patos-do-mato (Cairina moschata), criados por essa população, tinham uma alimentação rica em milho. Esses patos foram possivelmente domesticados, sendo a única domesticação animal conhecida a leste dos Andes.
O milho, além de ser um dos principais alimentos, pode ter desempenhado um papel fundamental nas trocas comerciais com outras regiões. Indícios apontam que os Casarabe estabeleceram rotas comerciais com os Andes, onde utensílios e adornos de cobre foram encontrados em seus assentamentos.
Apesar dos avanços, a arqueologia isotópica ainda enfrenta desafios no Brasil e em outras partes da América do Sul. O alto custo das análises, a falta de investimentos e dificuldades com a preservação do colágeno em ambientes tropicais são alguns dos obstáculos mencionados por especialistas, como Maria Ana Correia, antropóloga portuguesa associada à USP.
Outro ponto de discussão é a necessidade de um rigor ético na seleção e preservação de amostras arqueológicas, garantindo que futuras gerações de cientistas possam utilizar novos métodos de análise para obter informações ainda mais detalhadas.
O estudo da cultura Casarabe lança luz sobre o papel central do milho no desenvolvimento das civilizações amazônicas e destaca a importância de preservar o patrimônio genético e cultural dessa planta. Como destaca a geneticista Flaviane Costa, da Universidade de Oxford, compreender a história da domesticação e do cultivo do milho na Amazônia pode ter impactos relevantes para políticas de conservação e segurança alimentar na atualidade.
Ainda há muito a ser descoberto sobre a magnitude da produção agrícola dos Casarabe. O próximo passo é mapear todos os lagos e canais construídos por essa civilização para entender a extensão real de suas plantações e estimar o tamanho da população que habitava a região. Com novas pesquisas, poderemos revelar ainda mais detalhes sobre uma das civilizações mais engenhosas da Amazônia pré-colombiana.
Com informações da Revista Fapesp